Vimos à público, consternados por dois acontecimentos ocorridos durante essa semana, e amplamente noticiados em nível nacional e internacional, ambos tendo como protagonistas sujeitos crianças ou adolescentes, que deveriam estar protegidos pelo Estado, de acordo com leis nacionais e tratados internacionais relativos aos direitos humanos.
Nos EUA, em Ursula, na cidade de McAllen, no Texas, constatou-se a presença de crianças e adolescentes separados de suas famílias, dormindo em celas e cobertas com folhas de papel. As cenas e áudios divulgados por agências oficiais de notícia revelam, inclusive, crianças muito pequenas, algumas ainda usando fraldas e sem falar, desesperadas e chorando copiosamente. As consequências psíquicas dessa situação são incalculáveis, mas não há como subestimar sua gravidade.
No Brasil, na favela da Maré, no Rio de Janeiro, estado que se encontra sob intervenção militar, o menino Marcus Vinícius fui sumariamente executado enquanto caminhava de mochila e vestindo a roupa da escola. Ele morreu de hemorragia após esperar por mais de uma hora a ambulância que foi impedida de entrar na comunidade.
Na Carta de Princípios da Internacional dos Fóruns do Campo Lacaniano encontramos que “serão especialmente de sua alçada as conexões com as práticas sociais e políticas que se confrontam com os sintomas de nossa época”. Ora, não há como não considerar a questão das migrações e a questão da infância como sintomas da nossa época.
Segundo a fundação ABRINQ, 30 crianças e adolescentes são assassinados por dia no Brasil e o número de mortos mais do que dobrou entre 1990 e 2015. Entidades defensoras dos direitos humanos reconhecem esses números como genocídio. Por outro lado, o relatório Global Trends aponta 65,3 milhões de pessoas deslocadas por guerra e conflitos até o final de 2015.
Lembremos ainda, no caso do Brasil, que o Artigo 4º do Estatuto da Criança e do Adolescente prevê que “é dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.”
Constatamos com clareza que estamos caminhando rumo à previsão de Lacan na década de 60, a partir das coordenadas de leitura do mal estar da civilização que Freud proporcionou: uma época de segregação generalizada e sua sequência ainda mais nefasta: o campo de concentração generalizado.
Diante dessa constatação, vimos a público declarar nosso veemente repúdio a atos de desumanização e objetificação, sobretudo em relação a sujeitos que deveriam ser protegidos pelo Estado por estarem em situação de notória vulnerabilidade, seja pela migração, seja pela exclusão social.
No caso específico do Brasil, expressamos nossa solidariedade à comunidade da Maré e nos unimos às vozes que exigem a responsabilização do Estado pela morte de Marcus Vinícius.
Orientados pelo Discurso do Analista e suas consequências no laço social, sustentamos nossa posição contrária a toda forma de totalitarismo e de desrespeito com a alteridade radical que nos constitui.
Rede de Psicanálise e Infância do FCL-SP
Comissão de Gestão do FCL-SP
junho de 2018